PARADOXOS DA COMUNICAÇÃO DIGITAL E A PREMÊNCIA DE UMA TEORIA JURÍDICA

abr 28, 2021

Compartilhar

Letícia Lacerda de Castro. Doutoranda em Direito pelo IDP.

Remonta a 1970 um ensaio de Hans Magnus Enzensberger, intitulado “Elementos para uma teoria dos meios de comunicação”, que por vezes num tom profético, ao contextualizar a relação intrínseca entre mídia e poder, denominando-a de “indústria da consciência”, o autor vislumbra que os novos meios de comunicação que então se avizinhavam, por terem uma “estrutura igualitária”, tenderiam a eliminar todos os privilégios culturais, sociais e econômicos, bem como o monopólio “intelligentsia burguesa” da época.[1]

Nessa visão, a força mobilizadora dos meios de comunicação eletrônicos tratar-se-ia de um momento decisivo e aguardado à época, inclusive. É que pela primeira vez na história, a “indústria da consciência” possibilitaria a participação maciça em um processo produtivo social e socializado, o que lhe conferiria legitimidade. O ouvinte não se limitaria somente a escutar, mas também poderia falar, não se isolando, mas se relacionando…[2]

Comunicação e poder político sempre estiveram relacionados. Sabe-se da densidade dessa premissa, e o presente ensaio não a demarcará como objeto de investigação. Mas sua demonstração pode ser retratada num recorte histórico, para exemplificar.

Enquanto ocorria uma “quarentena de informação” decretada pelo fascismo e pelo stalinismo, visando à perenização do poder, houve uma consciente regressão da indústria dos meios de comunicação. A então União Soviética viu-se à época obrigada a romper com a fotocopiadora (!), pois esse aparelho seria hábil a converter qualquer indivíduo em um impressor em potencial. Claro, socialmente pagou-se um preço pela repressão das forças produtivas (a falta de informação, só para citar um dano). Paralelo a esse contexto, faz-se uma analogia desse fenômeno no capitalismo ocidental, com a copiadora eletrostática de técnica mais avançada e trabalhada com o papel normal (o que decorre na ausência de controle por fornecedor). Todavia, à época tal máquina era de monopólio da empresa “Xerox”, que tinha como princípio não vender seus aparelhos, mas locá-los. Razoável supor a existência de um controle das mãos que acessavam essas máquinas (ora, seu locus estaria no poder econômico e político)[3].

A censura (aqui entendida numa vedação ao acesso dos meios de comunicação) dos despatrimonializados, das minorias, dos não pertencentes a qualquer esfera do poder, poderia ser considerada estrutural. Não havia espaço, efetivo, de fala demarcado. Esses atores não construíam qualquer interlocução de forma igualitária com os grupos dominantes e as maiorias. Liberdade de imprensa e de opinião seriam, nessa lógica, uma ficção, mesmo em sociedades democráticas.

Na contemporaneidade, é possível refletir na concretização da previsão anunciada por Enzensberger, de abertura do espaço estrutural (em especial o virtual), para que um sem número de atores comuniquem-se. E, aliás, que sejam ativos na comunicação inclusive manipulada, entendida como aquela em que haja uma consciente intervenção técnica em um dado material. Nessa linha de raciocínio, pode-se cogitar da possibilidade de uma manipulação que tenha um propósito político, ou de influência da opinião pública nos institutos democráticos de um Estado de Direito.

Todavia, há um angustiante paradoxo na conquista da liberdade ou da libertação do sujeito habilitado a falar e se comunicar. Trata-se da perversidade da liberdade “livre” e não teorizada, defronte a esfera de direitos fundamentais da pessoa, bem como das estruturas fundantes do Estado Democrático de Direito.

Afinal, haveria algum limite (material ou espacial) da comunicação virtual? A “equação” de que a liberdade de expressão não deva colidir com a dignidade humana resolveria a questão? Lado outro, a precisão dos limites da comunicação seria não afrontar dado preceito normativo ou institutos fundantes do Estado de Direito ou das democracias mundiais? E quem seria o “juiz” habilitado a resolver essas questões jurídicas, no contexto da comunicação estabelecida[4]? Todas esses questionamentos são prementes e várias são as construções teóricas a respeito.

Mas se coloca importante, também, nesse contexto, pensar criticamente visando à refutação do fetiche da neutralidade das plataformas digitais, reconhecendo sua influência no alcance da propagação da informação. Ora, seria a internet hoje, efetivamente, um ambiente estruturado na igualdade, isonomia de oportunidades de comunicação, entre os diversos atores sociais e políticos, bem como na igualdade de fala entre maiorias e minorias, nas democracias atuais?

Considerando-se que para além de a comunicação ser uma fruição do direito fundamental à liberdade, também pode vir a ser uma faceta do exercício do poder e de uma sofisticada técnica de dominação política, bem como de construção de filtros ideológicos que comprometam ou fortaleçam a democracia, o prognóstico da liberdade e igualdade dos meios de comunicação na era digital tem potencial para ser manejado por um poder “oculto”: o das plataformas digitais. Com um elemento instigante, que é o protagonismo mínimo ou mitigado da esfera do poder estatal no controle da vida virtual (sim, ousa-se a defender que há uma vida artificial acontecida e acontecendo nas redes).

Rememora-se, se antes o poder político dominante (estadistas, liberais, nacionalistas …) manejavam os meios de comunicação, inflando-o ou controlando-o, é possível constatar que as plataformas, com sua técnica inalcançável e enigmática de algoritmos, softwares e inteligência artificial, tem potencial para ser a “mão invisível” que empurra e emperra os acontecimentos mundanos, definindo a alternância de poderio político e econômico de uma nação.

O enunciado pode ser um exagero, é verdade. Mas não há escape: é preciso teorizar visando ao alcance de uma teoria jurídica – crítica e livre de dogmatismo, aporias, e do direito não interrogado – dos meios de comunicação digital e das plataformas. Refutando-se ou não se se tratam de meras intermediárias de conteúdo; se é possível, criticamente, intitula-las de neutras, ou se ao revés, atuam, por uma escolha consciente, na propagação de conteúdo.

No âmbito da ciência jurídica, é premente a construção de uma teoria da responsabilidade[5], em que os sujeitos envolvidos sejam alçados a sujeito de direitos e deveres (e não apenas potenciais comunicadores no espaço dominado pelas plataformas). Outrossim, que nesse modelo de teoria da responsabilidade, ao se reconhecer que a matemática do provedor atua na propagação do conteúdo, potencializando ou não seu alcance[6], também seja, no plexo dos requisitos teóricos, definida a responsabilidade desses terceiros, na medida de sua responsabilidade pela propagação desse conteúdo, sem descurar, jamais, da garantia da liberdade de expressão.

Afinal, justamente despidos da ingenuidade de acreditar tratar-se os provedores de meros intermediários de conteúdo, é que se possibilita o alcance da fruição máxima da liberdade, tanto de ir e vir no ambiente virtual, assim como de expressar-se. Do contrário, haverá a perpetuação de uma cegueira deliberada do alcance dos algoritmos, matematicamente programados por uma inteligência protegida pelo modelo de negócios das plataformas, e que pode capturar a bolha até daqueles incansáveis e árduos defensores da democracia.

[1] Enzensberger, Hans Magnus. Elementos para uma teoria dos meios de comunicação; tradução de Helena Parente Cunha e Moema Parente Augel. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1979, p. 71

[2] Ob. cit. p. 50

[3] Ob. cit. p. 55

[4] A recente exclusão definitiva da conta do então presidente dos EUA, Donald Trump é perturbadora e revela o poder (político e econômico) das empresas de tecnologia mundo afora. Sob um fundamento, em tese, legítimo, o Twitter – inegável expoente da economia digital -, num ambiente (não)regulado, de forma independente e unilateral e, decerto, à vontade, calou a voz de um contumaz e poderoso comunicador de sua rede.

[5] Marilda de Paula Silveira, em texto intitulado “As plataformas são intermediárias ou sua matemática é responsável na circulação de conteúdo falso e danoso?”, propõe uma reflexão interessante sobre em que medida os provedores de aplicação contribuem para a ampliação do alcance de um perfil ou conteúdo falso, desinformativo ou ofensivo, registrando que essa reflexão pode impactar na responsabilidade civil das plataformas e no nexo de causalidade que estabelecem com eventual dano. https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/335662/as-plataformas-sao-intermediarias-ou-sua-matematica-e-responsavel-na-circulacao-de-conteudo-falso-e-danoso acesso em 19 de abr. de 2021.

[6] Como sustentado por Marilda de Paula Silveira, “parece claro que não é apenas o conteúdo publicado por um terceiro (seja o perfil identificado, identificável ou não) que contribuem diretamente para eventuais resultados danosos. Seja a publicação qualificada como orgânica ou paga. É, também, a matemática do provedor que atua para ampliar ou reduzir o alcance do que foi publicado a partir de um modelo de negócio que se propõe lucrativo. São os algoritmos protegidos pela propriedade intelectual, usando os dados fornecidos e colhidos a respeito de tudo e de cada um, que fazem a curadoria da imagem projetada sobre esse novo mundo digital”.

Letícia Lacerda de Castro

leticialcastro@gmail.com

 

Comentários

Matérias Relacionadas