Artigo publicado no JOTA por Letícia Lacerda de Castro, em 05 de julho de 2020.
Michele Taruffo, em sua obra “Uma simples verdade – O juiz e a construção dos fatos”, estabelece distinção entre narrativas boas, ruins, verdadeiras e falsas. Para o autor, não só a literatura, mas especificamente o Direito, não prescinde da construção de narrativas das partes em um processo.
Adverte, no entanto, que nem toda narrativa boa é verdadeira, no que “narrativas coerentes e persuasivas podem ser completamente falsas”. Assim, um enunciado que descreve um fato pode ser considerado verdadeiro, se racionalmente confirmado por provas anteriormente produzidas. [1]
A narrativa de um fato pode decorrer mais de uma consequência jurídica, com a subsunção da conduta em mais de uma fattispecie. Tratando-se da ciência jurídica eleitoral, essa situação é extremente sensível, pois não são raras as situações em que uma única conduta é utilizada como substrato fático para fundamentar a propositura de ações diversas, a saber: investigações judiciais eleitorais, representações, ações penais e até mesmo ações de improbidade administrativa.
O recorte do presente ensaio cinge-se à interferência da prova produzida nas ações civis eleitorais – que por estarem sujeitas a um termo ad quem exíguo para propositura, geralmente são instruídas e julgadas anteriormente a outras ações –, defronte das ações penais eleitorais.
Está-se a propor um enfrentamento à repercussão da prova emprestada do processo civil eleitoral ao penal eleitoral. A esse recorte se soma um contexto peculiar, que é de ser a Justiça Eleitoral competente para julgamento de crimes comuns conexos ao eleitorais, consoante definiu o Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do Inq 4.435.
Hipoteticamente, se no tempo que tenha relevância eleitoral (T), em um local (L), o sujeito (S) pratica determinada conduta (X) que tenha influído na situação jurídica de um sujeito (S2) e/ou na situação jurídica da normalidade e lisura do processo eleitoral (Y); tem-se que todas essas variáveis (T), (L), (S), (X), (S2) e (Y) devem ser provadas, no âmbito de um processo jurisidicional que se impõe constitucional, para imputação de responsabilidade à parte.
É pela via do processo constitucional que essa narrativa deve ser construída e provada – e não fora dele –, sendo que a própria Constituição Federal institui suas premissas fundantes, pelo devido processo, desenvolvido em contraditório e em ampla argumentação, de forma isonômica entre as partes; sendo vedada a proibição de provas ilícitas e garantida a imparcialidade do julgador.
A dogmática eleitoralista ainda se encontra presa na lógica da instrumentalidade processual, persistindo a concepção de uma relação jurídica entre autor e réu, sendo a figura do juiz aquela que, numa posição processual privilegiada, ao aplicar o direito, estaria investido de uma sabedoria nata, alcançando os “valores metajurídicos” da justiça na sentença, para citar Dinamarco[2].
O marco do instrumentalismo no processo eleitoral destaca-se de uma forma jamais concebida até mesmo no já revogado Código de Processo Civil de 1973. Se nesse antigo diploma propagava-se a livre convicção da apreciação da prova, na lógica do artigo 7º, parágrafo único, da LC 64/90, em que “o Juiz, ou Tribunal, formará sua convicção pela livre apreciação da prova, atendendo aos fatos e às circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes, mencionando, na decisão, os que motivaram seu convencimento”; é de se observar que a lei das inelegibilidades vai bem mais além, em seu art. 23, ao conferir super poderes ao juiz, considendo-o, a rigor, como um decididor dotado da habilidade de capturar a verdade pré-concebida fora da ambiência da dialética processual. Eis o dispositivo:
Art. 23, LC 64/90. O Tribunal formará sua convicção pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral.
A apreciação da prova não pode ser “livre”, no marco da processualidade democrática. Encontra-se no imaginário supor que a “motivação”, por si só, estancaria a forte carga de subjetividade imiscuída no ato decisório, já que na lógica do processo eleitoral, ao julgador os fatos públicos e notórios prescindem de provas contraditadas, podendo a “autoridade”, com base em um juízo subjetivo, utilizar de presunção e indícios na formação de sua convicção.
Vê-se que pela dicção do indigitado art. 23 “fatos públicos e notórios”, “presunção” e “indícios” têm o mesmo patamar da “prova produzida”, ou seja, o mesma carga probatória na construção do provimento.
Rememore-se que ao apreciar a constitucionalidade do art. 23, da LC 64/90, por ocasião do julgamento da ADI 1082, o Supremo Tribunal Federal entendeu que esse poder conferido ao juiz não contraria o devido processo legal, na medida em que “a possibilidade de o juiz formular presunções mediante raciocínios indutivos feitos a partir da prova indiciária, e de fatos publicamente conhecidos ou das regras de experiência”, constitui as premissas da decisão, que “devem ser estampadas no pronunciamento, o qual está sujeito aos recursos inerentes à legislação processual”.
Afora as dissonâncias do entendimento em referência às garantias constitucionais do processo, olvidou-se o STF em reconhecer que é pelo e no processo desenvolvido em primeira instância que se possibilida a ampla cognição das provas, mediante um contraditório efetivo entre as partes, legitimando-se, em tese, a construção do provimento.
A persistir esse entendimento, tem-se que mesmo após a vigência do Código de Processo Civil de 2015, que em sua principiologia erigiu a prova produzida nos autos como estabilizadora dos limites cognitivos do juiz, e a obrigatoriedade da indicação das razões da formação do seu convencimento (art. 371, CPC), ainda se manterá o estorvo à construção democrática do comando judicial.
Ainda por esse entendimento, as variáveis (T), (L), (S), (X), (S2) e (Y), indicadas num hipotético caso de ilícito eleitoral, poderiam ser de plano reconhecidas como provadas no processo eleitoral, posto que tidas por fatos públicos e notórios. Ou poderiam ser deduzidas por presunção ou juízo indiciário.
Nesse caso, indaga-se: deveria o juiz, ao assumir-se subjetivista, sanear o (in)devido processo e dispensar o contraditório referente ao fato público e notório? Lado outro, como se possibilitaria à parte que sofrerá os efeitos da decisão, refutar uma presunção ou um juízo indutivo que verte de poderes premonitórios circunscritos à esfera de (valoração) interpretação do magistrado?
Lênio Streck, em precisa advertência, destacou: “Qual é o problema de induções e julgamentos por presunções? Um não. Vários. O principal deles é que, em julgamentos por presunções, o cidadão-candidato não pode provar o contrário. Ele é culpado de plano, só porque só-podia-ser-ele e que “todo-mundo-sabe-que-foi-assim” [3].
Estando “provadas” as variáveis em referência, por esses “mecanismos” conferidos ao decididor, e na hipótese de ser reconhecida a prática do ilícito eleitoral, como a captação ilícita de sufrágio, ou o abuso econômico nas eleições, é de se reconhecer a correspondência desses ilícitos civis eleitorais ao campo do Direito Penal Eleitoral, na forma do tipo penal do art. 299 e 350 do Código Eleitoral, para exemplificar.
Nessa linha de raciocínio é que se refuta o compartilhamento da “prova” produzida no processo civil eleitoral ao penal eleitoral. É dizer, que o instituto da prova emprestada, disciplinada no artigo 372 do CPC, não seja trazido ao processo penal eleitoral, porquanto técnica eficiente para reafirmar a inquisitoriedade do processo penal, maculando-o pela imaginária e perversa verdade, encontrada no senso discricionário do julgador.
Essa hipotética prova emprestada, para além de não se amoldar às garantias constitucionais do processo, nega a aplicação da norma constitucional, que é a presunção da inocência da parte. A epistemologia crítica do processo penal orienta-se, com efeito, com juízos presuntivos (aí, sim, admitidos) sempre favoráveis ao réu.
A prova presuntiva e indiciária, bem como os fatos públicos e notórios, em tese admitidos no processo civil eleitoral, é justamente o contrário. Há uma grave aporia no sistema jurídico, o que conduz ao entendimento de que, sustentado o provimento na lógica do art. 23 da LC 64/90, vedado está o compartilhamento da prova do processo civil eleitoral pelo juízo penal.
Nessa senda, se o fato público e notório, ou a presunção e juízo indiciário forem extraídos do vazamento de uma interceptação ou busca e apreensão ilícitas, como se possibilitar sua comunhão, mesmo que de forma reflexa, no processo penal eleitoral? De outro ângulo, como se admitir a prova emprestada do processo civil eleitoral em que a parte fora revel, ou não teve a garantia a uma ampla e efetiva defesa, direito também orientador do processo penal?
Portanto, há uma inegável incomunicabilidade da prova entre os institutos processuais civil eleitoral e penal eleitoral, que não se resolve na máxima de independência das esferas. Comumente a denúncia na ação penal (que deve ter como estrutura irrenunciável a justa causa, entendida como a prova da materialidade e dos indícios de autoria) é encampada na prova e no provimento proferidos na ação civil eleitoral.
Exala-se como conclusão que os atores processuais – partes e juiz – devem estar vigilantes para detectar racionalmente quais as narrativas do caso civil eleitoral amoldam-se ao caso penal eleitoral, para que não haja a entronização do fato não provado, ou tido por provado, mas de forma insubsistente, o que geraria um claro acinte ao princípio do devivo processo.
Narrativas deste jaez não podem ser aproveitadas, à luz da teoria do processo penal, para a construção do provimento penal eleitoral. Do contrário, será negado ao processo penal eleitoral todo o ganho democrático da Constituição Federal de 1988.
[1] TARUFFO, Michele. Uma simples verdade, o juiz e a construção dos fatos. São Paulo: Marcial Pons, 2012, p. 89.
[2] DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 65.
[3] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mar-12/senso-incomum-direito-eleitoral-livre-apreciacao-prova>. Acesso em 24 de junho de 2020.